A Contabilidade Digital é um modelo de negócio para empresas de serviços contábeis cujo princípio é substituir a parte manual dos processos de coleta e input das informações por um sistema de gestão, que, além de automatizar a operação financeira dos clientes, gera todo o movimento contábil e fiscal automaticamente para o contador. É um processo que passa a ser executado de forma compartilhada e que aproxima contadores e clientes, potencializando a fidelização e agregando valor no serviço prestado, que passa a ter um novo olhar para o contador.
É um cenário onde todos ganham, sobretudo o cliente do contador, que ao adotar um software de gestão, passa a ter visão global da gestão do seu negócio e as possibilidades de otimização de recursos, decisões de investimento, controle de estoque, etc. Ainda por cima, ele recebe um serviço contábil mais rápido, de maior qualidade e menos sujeito a erros. Para o contador, os benefícios também geram entusiasmo: ganho de produtividade, redução de custos operacionais, maior segurança jurídica e a oportunidade de exercer um papel mais estratégico junto a seu cliente, oferecendo novos serviços como BPO e planejamento empresarial por exemplo, algo que era impossível na era do papel, classificação manual e digitação.
Portanto, a Contabilidade Digital é o primeiro passo para toda a empresa de serviços contábeis que sonha em assumir um papel consultivo frente a seus clientes – e a tecnologia é o caminho para tornar isto real – mas como tudo na vida, é preciso tomar alguns cuidados a fim de minimizar os riscos implícitos no processo, para que os benefícios de fato se concretizem.
Mas o que pode dar de tão errado assim no uso de um software voltado a ganhar eficiência e integrar informações? Na verdade, muita coisa. Vamos estudar aqui um caso real, sem revelar o nome da empresa que passou por esse tormento por motivos óbvios, e no final passar algumas dicas de como não cometer os mesmos erros.
Na Contabilidade Digital, os processos de coleta e processamento de informações (que anteriormente dependiam de malotes com documentos físicos e análises, classificações, digitação e arquivamento pela equipe do contador), são substituídos por uma integração de dados entre o sistema de gestão (ERP) usado pelo cliente e o software contábil utilizado pelo contador.
No nosso estudo de caso, o escritório em questão entendeu os benefícios de migrar sua atuação tradicional para a Contabilidade Digital e então, indicou para seus clientes o uso de um sistema de gestão, e estes, baseados na relação de confiança que já mantinham com o contador, aceitaram a sugestão e adotaram o uso do ERP.
Tudo estava rolando aparentemente bem, contador satisfeito com o ganho de produtividade obtido, clientes entendendo os usos do ERP, até que um certo dia, um dos clientes do escritório solicita uma reunião sem dizer o motivo, o que geralmente não é bom. Na reunião, o cliente vai direto ao assunto: amigo, além de você ter calculado meus tributos de forma totalmente errada, eu ainda perdi uma licitação por causa dos resultados contábeis que apresentei, que para a minha surpresa estão completamente fora da realidade dos meus números, e continuou quero saber quem vai pagar esse prejuízo agora. O ambiente ficou tenso, o contador chamou a sua equipe e começaram a caça às bruxas.
O cliente baseava sua alegação na diferença entre os números dos relatórios do seu sistema de gestão interno e dos demonstrativos gerados pelo escritório contábil. Realmente estava tudo muito, muito diferente. A investigação começou pelo ponto mais óbvio: verificar se a configuração da integração contábil do sistema de gestão do cliente, o famoso de/para, estava correta.
Surgiu então o primeiro momento ah ha, quando o contador descobriu diversas falhas nessa configuração, cuja causa raiz estava numa fragilidade no sistema de gestão usado pelo cliente: o mesmo usuário que digita receitas e despesas no financeiro tinha capacidade de criar novas contas e categorias à vontade, sem conhecimento do contador, e muitas dessas novas categorias criadas erroneamente não estavam corretamente amarradas com suas contrapartidas contábeis. Algumas estavam até duplicadas, ou seja, foram criadas porque o usuário que digitava as despesas não conhecia o nome correto das contas. Mas a empolgação acabou rápido, por dois motivos: primeiro, porque a diferença entre os números era muito maior, portanto ainda existia muito a ser descoberto, e segundo: dar a culpa na fragilidade do sistema não resolvia o caso, já que o próprio contador o havia indicado ao cliente.
Depois de dias buscando a fonte das maiores diferenças, o diagnóstico era inconclusivo. Por eliminação, a única explicação plausível seria o próprio cliente ter feito alterações retroativas nos lançamentos, ou seja, modificado os dados após a exportação das informações do ERP para o contador.
Dessa forma, a questão principal se tornou: como comprovar a lisura do serviço contábil prestado? Se a mesma coisa tivesse ocorrido na época onde tudo era manual, estava resolvido: bastaria pegar no arquivo a pasta com os documentos recebidos e mostrar que o trabalho foi corretamente executado com base nas informações enviadas pelo cliente. Só que essa pasta não existe mais. E para ajudar, o sistema não possuía um simples log de transações para verificar se e quando as informações foram alteradas. A única frágil pista encontrada veio de uma recuperação do arquivo de integração, mas esse também era superficial e não dava subsídios suficientes para embasar a defesa do contador.
A solução foi chegar a um acordo indenizatório, onde o escritório contábil arcou com todas as multas e parte dos prejuízos sofridos pelo cliente, já que a tecnologia dessa vez não ajudou. Mesmo com o acordo, a confiança havia sido abalada e o cliente abandonou esse contador, já que a credibilidade é o principal ativo de um escritório contábil.
Portanto, se você é prestador de serviços contábeis ou BPO, vale a pena parar para rever se você não está correndo riscos desnecessários. Segue aqui um pequeno checklist de como utilizar melhor a tecnologia na era da Contabilidade Digital:
1 – Verifique se o sistema utilizado pelo seu cliente possui controle de acesso para que usuários sem perfil de administrador não criem contas e categorias desordenadamente. Mesmo que o sistema tenha esse recurso, veja de perto um a um, pois em alguns casos o cliente pode ter criado todos os usuários como administradores, o que o invalida o recurso na prática.
2 – Verifique se o sistema ERP oferece um log completo de todas as transações (quem incluiu, alterou e excluiu informações, quando fez isso, qual era o dado anterior e qual é dado pós alteração). Sem log, não há recurso de TI forense capaz de averiguar responsabilidades.
3 – Verifique se o sistema de gestão possui recursos para, após o fechamento contábil, travar o período para que não ocorram mais alterações ou lançamentos retroativos sem a permissão do contador. E principalmente, verifique se a sua equipe está usando esse recurso.
4 – Periodicamente, veja com seu cliente o feedback que ele tem sobre o sistema de gestão. Um ERP precisa acompanhar o ritmo e o crescimento do negócio. Por que isso é importante? Porque quanto mais o cliente usar o sistema, e quanto mais o sistema puder se manter adequado para o tamanho do negócio, menos necessidade de troca de sistema e recomeços você e seu cliente terão.
5 – Antes de indicar um software de gestão ERP, use o sistema. Peça pro seu time testar as contas, os lançamentos, verifique o quanto ele se integra também ao seu sistema contábil e principalmente ao sistema fiscal (SPED, Bloco K, etc.), pois aqui está a maior parte do trabalho braçal. Não deixe de analisar o tipo de suporte que a empresa produtora do software oferecerá para você e para seu cliente.
6 – Analise se ao indicar um software de gestão para seus clientes, como estratégia para entrar no mundo da Contabilidade Digital, você poderá de fato se dedicar ao seu core business, ao DNA da sua atuação – a contabilidade e a consultoria – e não assumir novas responsabilidades como venda de licença, atendimento, suporte, implantação. Digo isso porque existe uma veia de receita muito maior em prestar consultoria estratégica, planejamento e acompanhamento de performance empresarial do que em comissões sobre venda de software.
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