Recentemente o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o HC 399109, decidiu que não pagar ICMS pode caracterizar crime.
Tal assertiva jurisprudencial, contudo, deve ser analisada com absoluta cautela, pois, o Direito Penal somente pode ser acionado quando outros ramos não dão cabo de proteger um determinado bem jurídico.
O crime de apropriação indébita tributária é um tipo penal de modalidade dolosa. Isto é, para que o agente seja efetivamente enquadrado no conceito do tal tipo penal, tem necessariamente que ter sido comprovado dolo específico em sua conduta. Caso o Ministério Público não comprove a ocorrência do dolo específico, como elemento subjetivo e essencial do tipo, o acusado deve ser absolvido.
No julgado mencionado o STJ adotou quatro critérios para caracterizar a conduta naquele caso como sendo de um crime em matéria tributária:
a. Reconhecimento, pelo contribuinte, da obrigação tributária.
b.Identidade entre quem ostenta ser o sujeito passivo da obrigação tributária e quem realmente o é.
c.Ser o acusado quem se identifica com a obrigação tributária.
d. Dolo específico de apropriar-se do tributo.
Partindo dessas premissas, enquadrando-se a conduta do agente em tais elementos, segundo o Superior Tribunal de Justiça, ele cometeu um crime tributário e merece ser punido pelo Direito Penal.
Abrindo um importante parêntese é de bom tom que lembremos de dois princípios fundamentais do Direito Penal brasileiro: o da intervenção mínima e o da fragmentariedade.
O primeiro deles, diz respeito ao caráter ultima lista ou minimalista do direito de punir do Estado, na exata medida em que este somente será acionado quando outros ramos do Direito não forem suficientes para proteger determinados bens jurídicos. É Direito Penal deve ser o último mecanismo de controle social, a ultima ratio do Estado.
Por meio do principio da intervenção mínima, portanto, é claramente possível com que o Direito Penal continue inerte diante de um fato social, quando outro ramo jurídico for capaz de intervir e solucionar o problema, regulando a conduta e dando a ela a devida punição, se for o caso, de outra natureza que não penal.
Nas palavras do penalista Rogério Greco observemos as facetas do Direito Penal:
“As vertentes do princípio da intervenção mínima são, portanto, como que duas faces de uma mesma moeda. De um lado, orientando o legislador na seleção dos bens mais importantes e necessários ao convívio em sociedade; de outro, também servindo de norte ao legislador para retirar a proteção do direito penal sobre aqueles bens que, no passado, gozavam de especial importância, mas que hoje, com a evolução da sociedade, já podem ser satisfatoriamente protegidos pelos demais ramos do ordenamento jurídico”. [1]
Já o princípio da fragmentariedade diz respeito à parcela de um determinado conjunto de bens jurídicos que é protegida pelo Direito Penal, significando dizer que ele não se presta, necessariamente, a proteger todos os bens jurídicos, mas apenas aqueles que não o puderam ser por outros ramos do Direito e, por via de consequência, que são mais importantes para sua tutela protetiva.
Nas palavras de Muñoz Conde, citado pelo professor Rogério Greco:
“Nem todas as ações que atacam bens jurídicos são proibidas pelo Direito Penal, nem tampouco todos os bens jurídicos são protegidos por ele. O Direito Penal, repito mais uma vez, se limita somente a castigar as ações mais graves contra os bens jurídicos mais importantes, daí seu caráter‘fragmentário’, pois que de toda a gama de ações proibidas e bens jurídicos protegidos pelo ordenamento jurídico, o Direito Penal só se ocupa de uma parte, fragmentos, se bem que da maior importância.”[2]
Por tais assertivas, de fato, o Direito Penal somente dará cabo de tutelar os bens jurídicos escolhidos como sendo os mais importantes, segundo o contexto social da época e, quando, especialmente, os outros ramos do Direito não forem suficientemente capazes de fazê-lo, sendo o direito de punir do Estado, portanto, chamado apenas em “último caso”.
O Superior Tribunal de Justiça instituiu critérios perigosos que poderão nortear muitos abusos nas instâncias inferiores e nas Administrações Tributárias, eis que gera uma presunção indevida de cometimento do crime de desapropriação indébita quando do não recolhimento do ICMS.
O crime tributário em análise é, portanto, de modalidade dolosa, pressupondo, pois, a ação humana intencional de lesar o fisco. Há, necessariamente, de se comprovar o dolo específico do agente na intenção de lesar o fisco – apropriar-se indevidamente do tributo que deveria repassar ao ente público.
Neste particular, não se pode cogitar do Direito Penal punir condutas de não pagamento de tributos, quando o próprio Direito Tributário dispõe de meios jurídicos para perseguir o crédito tributário, dentre os quais, os mais importantes: as elevadas multas tributárias, a Execução Fiscal e o recente Protesto de CDA.
Neste sentido, o julgado do STJ mostra seu pensamento apartado de um processo penal constitucional, no sentido de punir o não pagador de tributos com sanção penal, esquecendo-se da razão de ser do jus puniendi do Estado.
Aliás, é bom lembrar, neste aspecto, que a práxis penal do Judiciário deve condenar por crimes tributários somente os casos de comprovado dolo específico do agente, o que naturalmente só será verificado em cada circunstância fática levada ao conhecimento da autoridade policial investigativa e, posteriormente, no curso da ação penal, sempre garantindo-se o contraditório e a ampla defesa ao investigado, acusado e, posteriormente, réu.
A ideia de ter o Direito Penal como ultima ratio implica necessariamente na mitigação do intervencionismo do Estado num dos bens jurídicos de maior importância do ser humana, o direito de ir e vir. Esse entendimento, inclusive, poderá dar cabo à retomada da ampliação da extinta prisão civil do devedor. Ao aplicar-se o Direito Penal de modo desenfreado e sem as devidas cautelas, o Estado poderá cometer injustiças, as quais devem ser banidas no atual cenário jurídico constitucional brasileiro, devendo prevalecer a ordem constitucional garantista e pautada no respeito pleno dos direitos fundamentais dos indivíduos.
Portanto, antes e uma persecução penal ser iniciada pelo não pagamento de tributos, deve o Estado, com o devido cuidado, analisar se de fato há elementos para que o Direito Penal seja acionado. Caso não haja elementos, ele, o Estado, deverá valer-se dos mecanismos colocados por lei à sua disposição, para buscar a recuperação do crédito tributário, podendo utilizar-se do Protesto de CDA e da Execução Fiscal.
Dessa maneira, nem toda conduta de “não pagamento de tributos” poderá ser considerada crime tributário e punível com o Direito Penal, mesmo porque, erros estatais podem ensejar sua responsabilidade civil, ocasionando metaforicamente os efeitos da famosa frase: “o feitiço se voltou contra o feiticeiro”. No fim, toda a coletividade seria prejudicada por conta de uma condução equivocada da praticabilidade penal no caso dos crimes tributários.
[1]GRECO, Rogério.Curso de Direito Penal: parte geral, volume I / Rogério Greco. – 19. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2017.
[2]GRECO, Rogério.Curso de Direito Penal: parte geral, volume I / Rogério Greco. – 19. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2017.
Fonte: Portal Contábeis via Tancredo Aguiar Advocacia