Por Renato Vilela Faria, Alexandre Luiz Moraes do Rêgo Monteiro e Ricardo Maitto da Silveira

O avanço tecnológico, em especial a partir da criação da internet, proporcionou um ambiente econômico e cultural absolutamente disruptivo, notadamente a partir do início do século XXI. Nesse contexto, o fenômeno de maior relevância para a economia, desde a Revolução Industrial, foi o surgimento da economia digital. A expressão passou a ser utilizada a partir de meados da década de 1990 para se referir às atividades econômicas desenvolvidas por meio do uso da tecnologia digital, particularmente as transações realizadas em ambiente virtual.

O ambiente inovador da economia digital permitiu o nascimento da computação na nuvem (cloud computing), da transmissão de conteúdo audiovisual pela internet, da nanotecnologia, das impressoras 3D, da criação de moedas virtuais e marketplaces, além do desenvolvimento de uma economia baseada em serviços digitais e “funcionalidades”.

Os modelos de negócio desenvolvidos no âmbito da economia digital têm como característica comum a perda de relevância de atributos como a ação humana ou a presença física no local onde a atividade é desenvolvida. Em meio aos efeitos da “economia compartilhada”, o processo produtivo passa a ser mais integrado e os intangíveis representam o grande componente de valor das empresas.

Como não poderia deixar de ser, o avanço desta nova economia coloca um grande desafio para os sistemas tributários atuais, que foram moldados a partir da economia tradicional, tendo como parâmetros a localização física dos contribuintes (residência), a origem dos rendimentos (fonte), a ação humana como um “dar” ou um “fazer” e a já ultrapassada distinção entre “mercadorias” e “serviços”.

É a partir desse contexto que sugiram iniciativas como o projeto Beps (Base Erosion and Profit Shifting Program), encabeçado pela OCDE e pelos países do G20, em que se discutem novas políticas fiscais para a proteção da base tributária dos países, além da reformulação das atuais regras de tributação internacional. Dentre as diferentes ações para essa finalidade, o endereçamento do tema da economia digital surge com grande relevância no Plano de Ação 1 (Addressing the tax challenges of the digital economy).

No Brasil, a maior parte dos desafios para a tributação dos negócios desenvolvidos na economia digital está concentrada na tributação sobre o consumo, dada a existência de diferentes modalidades de tributos e a guerra fiscal entre as diferentes esferas de competência (estados versus municípios).

De fato, a introdução de novas funcionalidades tem gerado um acirramento dos conflitos de competência já vivenciados entre estados e municípios, mais precisamente quanto à definição do que sejam “mercadorias” ou “serviços”, cada vez menos adequada para delimitar o âmbito de incidência do ISS ou do ICMS.

Como exemplo das dificuldades enfrentadas para a qualificação da relação jurídica ou da natureza do “produto digital”, colhe-se aquele citado por doutrinadores como Luís Eduardo Schoueri, em inovador artigo sobre a tributação da internet das coisas[1]. O autor aponta para a natureza complexa das transações realizadas nesta seara, por vezes envolvendo não apenas a venda de mercadoria, mas sucessivas prestações de serviços, a exemplo dos serviços de chamada de emergência inteligente e da comercialização de roupas inteligentes.

Ainda no que toca às discussões vivenciadas no país na seara da tributação sobre o consumo, especialistas como José Eduardo Soares de Melo suscitam o debate sobre a tributação da disponibilização de áudio, vídeo, imagem e texto pela internet (streaming). Para Soares de Melo, embora a recente Lei Complementar 157/16 tenha tentado trazer para o campo de incidência do ISS a referida cessão de uso, não há nesses casos uma “obrigação de fazer” que possa respaldar a incidência de ISS. Em seu artigo, o autor lança dúvidas quanto à aplicabilidade do conceito de “serviço”, tal como definido na Constituição, à nova realidade tecnológica[2].

Em linha com esse entendimento, também Heleno Torres, ao examinar a forma de tributação da veiculação de material publicitário por provedor de internet, descortina a causa subjacente desse tipo de transação, que na sua visão equivale à “cessão de espaço virtual”, enfatizando a não incidência seja de ISS ou de ICMS sobre a referida relação jurídica[3].

No âmbito da economia digital, portanto, as dificuldades em se compatibilizar a matriz constitucional do ICMS e ISS, constatada pelos exemplos apontados, faz com que autores como Marco Aurélio Greco proponham uma abordagem inédita sobre como tributar essas atividades digitais, com a criação de uma nova modalidade tributária, independentemente de qualquer reforma tributária ampla ou de grandes alterações quanto à repartição das receitas entre União, estados e municípios[4].

No âmbito internacional, as discussões envolvendo a tributação da economia digital têm sido concentradas particularmente na tributação sobre a renda e na necessidade de adaptação das regras de tributação internacional, a exemplo das medidas sugeridas no mencionado Plano de Ação 1 do Beps.

As preocupações suscitadas pelo Beps são voltadas para o risco de erosão de base tributária gerado pela alocação (artificial) de intangíveis — e das correspondentes receitas tributáveis — para países com baixa tributação, particularmente quando o modelo de negócios adotado pelas empresas permite o desenvolvimento de suas atividades sem a necessidade de presença física no território onde está localizado o mercado consumidor.

A esse respeito, o professor Arthur Cockfield, da Queen’s University (Canadá), lembra das naturais dificuldades de se adaptar as regras de Direito Tributário Internacional aos avanços do mundo digital, criticando o caráter meramente propositivo do projeto Beps. Neste ponto, Cockfield ressalta a tentativa de se promover a tributação na fonte a partir do princípio do estabelecimento permanente às situações de “presença digital significativa”, observando que a elasticidade que se procura dar à interpretação das regras convencionais tem permitido uma autêntica mutação do conceito tradicional de estabelecimento permanente[5].

Nesse mesmo sentido, autores como Guillermo Teijeiro[6], Walter Hellerstein[7], Michael Kobetsky[8] e Asatsuma Akiyuki[9] também destacam as dificuldades existentes no endereçamento das discussões oriundas das relações na economia digital em seus países. Buscam, assim, compartilhar algumas das iniciativas vivenciadas, respectivamente, por Argentina, Estados Unidos, Austrália e Japão, seja no tocante à tributação sobre a renda ou consumo, seja no que atine ao combate às estruturas usualmente utilizadas por multinacionais como Google, Apple e Amazon, entre outras[10].

Esse breve panorama revela que o surgimento da economia digital traz consigo diversos desafios concernentes à compatibilização das regras para tributação aos novos negócios jurídicos. É nesse cenário que surgiu a ideia de criar, no Brasil, uma obra abrangente sobre o tema, que foi recentemente publicada com o título Tributação da Economia Digital: desafios no Brasil, experiências e novas perspectivas, que tivemos o privilégio de coordenar a partir da contribuição de mais de 100 autores do Brasil, Canadá, EUA, França, Japão, Austrália, Argentina, Índia, Holanda e México.

A intenção é suscitar o debate acerca de como aplicar as normas tributárias vigentes em face desta nova realidade econômica, além de trazer ao conhecimento do público brasileiro os desafios e as soluções que vêm sendo discutidas nas principais economias do mundo. A obra tem também um caráter propositivo, na medida em que suscita o debate acerca da necessidade de reforma do sistema tributário brasileiro.

A partir de um conjunto de 70 artigos, o aspecto mais inovador do livro é poder congregar as visões de representantes das empresas, de especialistas em tributação e membros da administração tributária. A contribuição inestimável de autores com ampla autuação nas questões tributárias ligadas à economia digital, tanto no Brasil quanto no exterior, certamente representa um marco importante no estudo do tema, impulsionando uma discussão difícil, porém necessária, sobre como adaptar os sistemas tributários à nova realidade.

 


 

O coquetel de lançamento do livro Tributação da Economia Digital: desafios no Brasil, experiências e novas perspectivas ocorrerá no dia 16 de outubro, na Livraria da Vila (Jardins), em São Paulo.

[1] SCHOUERI, Luís Eduardo; GALDINO, Guilherme. Internet das coisas à luz do ICMS e do ISS: entre mercadoria, prestação de serviço de comunicação e serviço de valor adicionado. In: FARIA, Renato Vilela; SILVEIRA, Ricardo Maitto da; MONTEIRO, Alexandre Luiz M. R. Tributação da Economia Digital: desafios no Brasil, experiências e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 245-268.

 

[2] MELO, José Eduardo Soares de. A Lei Complementar n. 157/2016 à luz da Constituição Federal: aspectos relacionados à retroatividade e aos campos de incidência de ICMS e do ISS na atividade de difusão de vídeos, áudio e textos de internet. In: FARIA, Renato Vilela; SILVEIRA, Ricardo Maitto da; MONTEIRO, Alexandre Luiz M. R. Tributação da Economia Digital: desafios no Brasil, experiências e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 272-273.

 

[3] TÔRRES, Heleno Taveira. ICMS e a divulgação de material publicitário na internet por provedor. In: FARIA, Renato Vilela; SILVEIRA, Ricardo Maitto da; MONTEIRO, Alexandre Luiz M. R. Tributação da Economia Digital: desafios no Brasil, experiências e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 480 e ss.

 

[4] GRECO, Marco Aurélio. Tributação e Novas Tecnologias: Reformular as Incidências ou o Modo de Arrecadar? Um “SIMPLES” Informático. In: FARIA, Renato Vilela; SILVEIRA, Ricardo Maitto da; MONTEIRO, Alexandre Luiz M. R. Tributação da Economia Digital: desafios no Brasil, experiências e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 480 e ss.

 

[5] COCKFIELD, Arthur. Canada: Taxing Global Digital Income in a Post-BEPS World. In: FARIA, Renato Vilela; SILVEIRA, Ricardo Maitto da; MONTEIRO, Alexandre Luiz M. R. Tributação da Economia Digital: desafios no Brasil, experiências e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 1070 e ss.

 

[6] TEIJEIRO, Guillermo O, Vázquez, Juan Manuel. Taxation of the Digital Economy: Argentina Perspective. In: FARIA, Renato Vilela; SILVEIRA, Ricardo Maitto da; MONTEIRO, Alexandre Luiz M. R. Tributação da Economia Digital: desafios no Brasil, experiências e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 1145 e ss.

 

[7] HELLERSTEIN, Walter. Taxation of the Digital Economy: A U.S. Subnational Perspective. In: FARIA, Renato Vilela; SILVEIRA, Ricardo Maitto da; MONTEIRO, Alexandre Luiz M. R. Tributação da Economia Digital: desafios no Brasil, experiências e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 1086 e ss.

 

[8] KOBETSKY, Michael. Australia’s Multinational Anti-Avoidance Law (2016): Treating the symptom rather than the disease. In: FARIA, Renato Vilela; SILVEIRA, Ricardo Maitto da; MONTEIRO, Alexandre Luiz M. R. Tributação da Economia Digital: desafios no Brasil, experiências e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 1104 e ss.

 

[9] Akiyuki, Asatsuma. Taxation of the Digital Economy: Japan Perspective. In: FARIA, Renato Vilela; SILVEIRA, Ricardo Maitto da; MONTEIRO, Alexandre Luiz M. R. Tributação da Economia Digital: desafios no Brasil, experiências e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 1179 e ss.

 

[10] KOBETSKY, Michael. Australia’s Multinational Anti-Avoidance Law (2016): Treating the symptom rather than the disease, op. cit., p. 1108.

 


 

Renato Vilela Faria é advogado, mestre em Direito Tributário, Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP), pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e professor de Direito Tributário.

Alexandre Luiz Moraes do Rêgo Monteiro é advogado, doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), LL.M em International Taxation pela New York University School of Law, conselheiro do CMT-SP e juiz do TIT-SP.

Ricardo Maitto da Silveira é advogado, mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).

Fonte: Conjur