Por Cleide Regina Furlani Pompermaier
O sistema tributário brasileiro é caótico, burocrático, custoso e opressivo, sendo natural que, num ambiente como esse, pensemos em novas soluções que amenizem a já conhecida e conturbada relação fisco versus contribuinte.
Os conflitos de relacionamento entre os brasileiros e o fisco geraram ao longo dos anos sérias ineficiências do sistema tributário, retardando a entrega do dinheiro do contribuinte ao Estado e, ainda, congestionando a atividade do Judiciário, que têm em suas mãos muitos processos em matéria tributária para serem resolvidos, motivo pelo qual, novos instrumentos devem garantir uma concreta participação da Administração Tributária, assegurando ao sujeito colaborativo um tratamento sancionatório mais favorável daquele que lhe seria aplicado pelos meios ordinários.
O fato é que estamos vivendo tempos novos no direito processual e essa nova fase pede mais efetividade e menos recursos. Foi por esse motivo que a Lei Nacional 13.140/2015, que dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública foi editada. Para dar efetividade as modalidades de solução alternativa de conflitos contenciosos.
O tema da transação tributária, que é o que nos interessa no presente estudo, não é novo, sendo que o instituto está previsto no artigo 171 e no artigo 156, inciso III, ambos do Código Tributário Nacional desde 1966, mas nunca foi colocado em prática objetivamente, muito embora não falte doutrina nesse sentido, incentivando a aplicação da medida prevista em lei.
Reza o artigo 171, do Código Tributário Nacional, verbis:
“Art. 171. A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e conseqüente extinção de crédito tributário”.
O intuito da transação tributária é dirimir conflitos. Dirimir conflitos é interpretar a legislação relativa a obrigações tributárias conflituosas e dar um basta à lide. Esse basta pode se dar por meio de concessões mútuas e consequente extinção do crédito tributário. A missão do agora é a desburocratização e desburocratizar é encurtar caminhos, como costuma dizer o nosso colega de profissão Luciano Arthur Hutzelmann. O grande norte da autocomposição é lançar mão de uma burocracia que assola o país e ir ao encontro de soluções que desmistifiquem o direito tributário e o próprio Poder Judiciário. As medidas devem ser de ordem prática e que alcancem resultados positivos seja para o contribuinte, para o Judiciário e para o Poder Público. A verdade está em dizer, em suma, que novas medidas devem ser adotadas pelos Entes Federados, “a fim de que os mesmos continuem no mercado”.
Faz-se necessário desfazer, entretanto, o mito de que a indisponibilidade do interesse público e, consequentemente, do tributo devem impedir acordos realizados pelos entes públicos. O acordo pode e deve ser feito desde que, obviamente, respeitadas regras claras estabelecidas em lei e em consonância com a Constituição Federal.
Veja-se, a propósito, o que ensinam Diana de Barros Lobo e Phelippe Pires de Oliveira a respeito do tema:
“O primado de indisponibilidade do interesse público deve ser interpretado em vista de um interesse maior de efetividade da jurisdição, de estabilização das relações jurídicas e interesses gerais da sociedade. Essa perspectiva mais ampla já orientou diversas iniciativas do Estado, a exemplo da possibilidade de conciliação dos entes públicos em Juizados Especiais, a permissão para que os procuradores públicos não apresentem recursos de matérias pacificadas, entre outras. Nesse sentido, a verdadeira perseguição do interesse público levaria justamente à possibilidade de solução alternativa também para a conclusão de litígios tributários” [1]
Faz-se mister enfatizar, ademais, que o conceito de indisponibilidade na área tributária não é absoluto e, tanto isso é verdade, que a Lei mais inovadora e atual sobre o tema — a Lei Nacional 13.140/2015, em seu artigo 3º, § 2º – releva tal possibilidade de forma expressa “§ 2º O consenso das partes envolvendo direitos indisponíveis, mas transigíveis, deve ser homologado em juízo, exigida a oitiva do Ministério Público”. Ou seja, a Lei 13.140/2015, ao permitir a autocomposição em matéria tributária, está admitindo a relativização da indisponibilidade do tributo, podendo esse ser objeto de transação. Nesse raciocínio, forçoso, aliás, indagar: se a lei pode conceder anistia, remissão, autorizar descontos no IPTU em caso de pagamento à vista, etc., por qual motivo deveria negar o óbvio quanto à transação tributária?
Uma dúvida que sempre surge quando se fala em transação tributária é saber se os descontos podem atingir o montante do tributo ou se esse desconto deve ficar restrito aos encargos incidentes sobre o mesmo. A resposta está no próprio conceito de transação tributária insculpido no artigo 171, do Código Tributário Nacional, quando permite que o ente tributante possa celebrar acordos mediante concessões mútuas.
Uma dessas concessões, desde que obedecidos os critérios legais, pode ser o consentimento de descontos sobre o próprio tributo e não apenas sobre os encargos incidentes sobre o mesmo. Em caso do ente federado querer restringir os descontos apenas para os encargos incidentes sobre o tributo, deve fazê-lo no próprio estatuto legal, para não deixar margens à dúvida, mas nada há no Sistema Tributário Nacional que impeça tal procedimento, seja na Constituição Federal como nas leis infraconstitucionais.
Certo é dizer que a transação tributária vem ao encontro do princípio da eficiência, insculpido no artigo 37, caput, da Constituição Federal, da já citada Lei 13.140/2015 e do artigo 334 e muitos outros do novo Código de Processo Civil, que, como se disse anteriormente incentivam ao máximo a solução de conflitos por meios alternativos.
Pode-se afirmar que o instituto da transação tributária está muito bem amparado juridicamente, mas ainda falta a conscientização das administrações públicas para colocá-lo em prática, como uma forma de extinguir o crédito tributário, como bem preconiza o artigo 156, inciso III, do Código Tributário Nacional.
O filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626) evidencia a finalidade prática e operacional do saber, tendo sido o grande responsável pelo conceito moderno da ciência tecnológica, atribuindo enorme importância da experiência, que, segundo ele, é essencial para se chegar a conhecer a verdade. Em resumo, Bacon, conhecido como o profeta da técnica[2] não era muito paciente, gostava de dinheiro e não se contentava com o saber pelo saber. Queria ver a ciência ativa e operante e a serviço do homem. Só assim, segundo ele, o conhecimento se transforma em Poder. E mais: a conquista da nova verdade não pode ser guardada a sete chaves, devendo o resultado da conquista ser apresentado para toda uma coletividade.
É o que estamos fazendo com a experiência implementada em Blumenau com relação à transação dos créditos tributários e não tributários, programa esse que, em nosso entendimento, pode ser replicado em outros municípios, estados e na União, lembrando, entretanto, que em relação a essa última, o inciso I, do artigo 38, da Lei 13.140/2015, lamentavelmente, dispôs no sentido de não permitir a autocomposição, nos casos em que a controvérsia jurídica seja relativa a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil ou a créditos inscritos em dívida ativa.
No caso de nosso município, a inovação diz respeito à materialização do instituto da transação, previsto no artigo 171 e artigo 156, inciso III, do Código Tributário com um misto da autocomposição prevista na Lei 13.140/2015. O modelo adotado e operacionalizado em Blumenau é inédito no país, sendo que, em dezembro de 2017 foi editada a Lei Municipal 8532/2017, a qual traça, em resumo, requisitos objetivos e subjetivos para que o município de Blumenau possa realizar acordos em matéria tributária e não tributária em execuções fiscais, com valor da causa que não ultrapasse 40 salários mínimos vigentes à época do acordo e ajuizados até 31 de dezembro de 2014. Esse mesmo diploma legal municipal ordena, igualmente, que um mesmo devedor poderá transacionar créditos com o município apenas uma única vez e que estará impedido de transacionar se o sujeito passivo for réu ou tiver sido condenado por crime contra a ordem tributária na esfera municipal.
A composição dos litígios judiciais envolvendo créditos tributários e não tributários do município será realizada por uma Câmara de Transação com competência para propor acordos, composta exclusivamente por procuradores municipais de cargo de provimento efetivo, conforme preconiza o artigo 32 caput da Lei 13.140/2015, sendo importante esclarecer que o referenciado Estatuto Legal permite descontos de 100% na multa e nos juros, podendo, chegar, ainda, dependendo do caso e de forma excepcional, em até 70% do principal, sendo que o valor acordado poderá ser parcelado em até seis parcelas mensais.
O agendamento das audiências de transação será efetivado por duas maneiras diversas. Uma por meio do atendimento feito por servidores do município de Blumenau, nos casos em que o comparecimento do devedor se dá de forma espontânea e, ainda, por meio do Poder Judiciário, que providencia intimações, a fim de que a parte compareça à prefeitura para fazer o acordo, caso a mesma assim o desejar, lembrando que quando houver advogado constituído nos autos do processo, a correspondência será endereçada ao advogado do devedor.
No momento da marcação da audiência, o servidor responsável pelo atendimento realizará também a abertura de um processo administrativo eletrônico, o qual será instruído com os documentos pertinentes à realização da transação, ocasião em que o devedor terá ciência acerca dos documentos que deverá apresentar no momento da realização do ato administrativo.
A audiência de transação é documentada com a confecção de um termo, contendo, em suma, o relatório da lide, o demonstrativo detalhado do crédito tributário, os fundamentos de fato e de direito, as motivações e condições para cumprimento do acordo, incluindo as condições econômico-financeiras do devedor, a descrição das concessões mútuas das partes para a extinção da obrigação pela transação, as responsabilidades do sujeito passivo no eventual descumprimento dos termos acordados e a renúncia expressa do sujeito passivo aos direitos ou interesses anteriores relativos ao objeto da transação.
O termo de acordo será assinado pelas partes e, depois de efetuado o pagamento do débito, será submetido à homologação do Juízo, após a ouvida do Ministério Público, com pedido de extinção do processo executivo. Os procuradores membros da Câmara somente poderão ser responsabilizados criminal ou administrativamente apenas nos casos de dolo ou fraude, comprovado mediante processo administrativo disciplinar ou ação penal.
A aferição dos requisitos subjetivos — depois do devedor ter comprovado os requisitos objetivos — se dá por meio de uma tabela de pontuação, que vai de zero a cinco, em que será considerado, em cada caso em particular, o histórico fiscal do devedor, a economicidade da medida, a sua situação econômica, o tempo de duração do processo em Juízo, a chance de êxito do município na causa e, finalmente, a existência de precedentes jurisprudenciais contra a tese do credor já pacificadas por súmula dos tribunais superiores, repercussão geral ou recursos repetitivos.
Em caso de fechamento do acordo, o devedor receberá, já em audiência, as guias para adimplemento da dívida transacionada, seja para pagamento à vista ou de forma parcelada. Os documentos apresentados pelo devedor no referenciado ato processual administrativo, assim como todos os demais documentos que influenciarem na composição da avença, serão digitalizados e anexados no processo administrativo eletrônico.
O programa da transação de créditos tributários e não tributários de Blumenau, enfim, é inovador e de grande relevância no processo de gestão pública, na medida em que trará recursos financeiros ao município, ainda mais no momento atual de plena crise econômica. A contribuição é igualmente relevante ao Poder Judiciário, que poderá dar baixa na estatística de muitos processos, considerando que o acordo realizado põe fim ao litígio judicial instaurado.
O lançamento do programa ocorreu no dia 26 de março de 2018 e as audiências tiveram início no dia 12 de abril, sendo que até o dia 14 de setembro, de 118 audiências feitas foram negociados R$ 434,1 mil, com baixa de 261 processos executivos fiscais. Parece pouco, mas pelo pouco tempo de existência do programa e pelos módicos valores que podem ser transacionados, a quantia muito representa.
O momento político e econômico, em resumo, pede mudanças e na área tributária não poderia ser diferente, sendo essa uma medida legal e constitucional que vai ao encontro às tão propagadas formas de solução alternativas de conflitos judiciais. Todos cedendo um pouco e todos ganhando muito.
Referências
Art. 3º, § 2º da Lei Nacional 13.140/2015.
Art. 171, do Código Tributário Nacional.
Art. 156, inciso III, do Código Tributário Nacional.
Lei Municipal de Blumenau 8532/2017.
Art. 32 caput da Lei 13.140/2015.
Art. 37, caput, da Constituição Federal.
DE BARROS LOBO, Diana e PIRES DE OLIVEIRA, Phelippe. Transação tributária: mito ou realidade . Artigo publicado no Jornal Valor Econômico. Disponível no seguinte endereço eletrônico <https://alfonsin.com.br/transao-tributria-mito-ou-realidade/>. Acesso em 29 de maio de 2018.
LAMENDOLA, Francesco. Manipolazione spietata di cose, vegetali ed animali nella « Nuova Atlantide » di Francesco Bacone. Disponível no seguinte endereço eletrônicohttp://www.accademianuovaitalia.it/index.php/cultura-e-filosofia/filosofia/2172-francesco-bacone. Acesso em 05 de junho de 2018.
[1] Transação tributária: mito ou realidade . Artigo publicado no jornal Valor Econômico. Disponível no seguinte endereço eletrônico <https://alfonsin.com.br/transao-tributria-mito-ou-realidade/>. Acesso em 29 de maio de 2018.
[2] LAMENDOLA, Francesco. Manipolazione spietata di cose, vegetali ed animali nella « Nuova Atlantide » di Francesco Bacone. Disponível no seguinte endereço eletrônicohttp://www.accademianuovaitalia.it/index.php/cultura-e-filosofia/filosofia/2172-francesco-bacone. Acesso em 05 de junho de 2018.
Cleide Regina Furlani Pompermaier é procuradora do município de Blumenau e membro da Comissão de Juristas da Desburocratização do Senado Federal.
Fonte: Conjur